No ano passado, por esta altura, discutia-se a possibilidade da ausência de chumbos (as reprovações) até ao 9º ano.
E a minha questão a toda a poeira que se levantou foi a seguinte:
quando é que o chumbo é sinónimo de rigor e de exigência?
A resposta, a meu ver, é simples: nunca.
A escola deve ter, primeiro e acima de tudo, uma matriz social, humana e civilizadora. É óbvio, para qualquer pessoa, que não é o que acontece. A escola foi transformada num aparelho pesado, com outros interesses (como os que obedecem à categorização por rankings, como se fossem fábricas de cidadãos de diferentes categorias de importância).
Uma criança ou um jovem não são obrigados a gostar desta escola. Aliás, é saudável que não gostem.
Se a educação é compulsória, então é a escola que tem de cativar as crianças e os jovens. Nunca, mas mesmo nunca, a motivação vem com as mochilas.
Desde quando é que um conhecimento profundamente truncado se torna integral? Se um jovem não gosta de determinada área, será a obrigatoriedade a forma mais capaz de mudar o estado da arte? E o que é "rigor e exigência": este sistema, assente no acatamento acrítico, fatiado em disciplinas de 1ª, de 2ª e de 3ª (segundo a "importância" que uns senhores de tabela excel pousada no joelho estabeleceram)?
Não deveria ser fomentada, desde cedo, dentro da realidade do trabalho, a liberdade de escolha adaptada às circunstâncias? Não deveria ser encorajado o poder da iniciativa? Da vontade própria? Da descoberta? Da curiosidade? Da criatividade?
Na década de '20 do século passado, já Abel Salazar, médico e professor (e pintor, e por aí), Homem notável em qualquer tempo, era original na forma como conduzia as aulas: a partir de uma inovadora orientação pedagógica, defendia um ensino aberto, apoiado na observação, na investigação e na discussão científica, promovendo o autodidactismo dos alunos. Há cem anos!
Que raio de paternalismo é esse, o de se achar que outros, que estudaram muito (e se saíram bem num sistema desinteressante, mesquinho, amorfo, marrão, repetitivo, fomentador de desigualdades e de invejas) é que sabem sempre o que é melhor para os que ainda estão a estudar? Com que direito se transformou uma conquista democrática numa máquina debulhadora? Então e os que pensam de forma distinta (e os que não acatam)?
Olho para isto, apenas, com duas certezas, ou quase-certezas:
1ª O santo receio da obsolescência: dar o exemplo ou colocar o "poder" do outro lado é abdicar dele, logo, o "ensinar a pensar" passará à frente do "ensinar a como pensar". Não me parece que isso interesse a quem apenas se foca em interesses paralelos;
2ª a legitimação pela exclusividade no acesso às oportunidades: crer que os bons alunos (sejam lá o que forem) merecem mais oportunidades do que os alunos assim-assim, ou os alunos fracos, é acreditar que a ordem natural das coisas depende de um coador social aprimorado pelo sistema educativo, tendo por base a capacidade de armazenamento de informação a curto-prazo. Isto levanta uma enorme questão: passamos anos a fio a ouvir que a educação é um ascensor social, quando, na verdade, não passa de uma peneira. Se toda a gente fosse "boa aluna", haveria bons empregos e oportunidades para todos? Não teríamos problemas como a pobreza e os bairros sociais? Pois...
Algo que é visto como eminentemente bom poderá não o ser. Muitas vezes não o é. Algo que promove meia dúzia e deixa cair a larga maioria é uma doença. Uma epidemia.
Para mim, chamar "bom aluno" a um repetidor de matéria é um claro sintoma dessa epidemia, instalada por toda a parte.
Foram repetidores de informação acríticos e "altamente qualificados" que perpetraram o Holocausto. São repetidores de informação altamente qualificados que afundam o mundo, dia após dia.
Parem de tentar parar os únicos progressos que valem realmente a pena!
Os chumbos servem para estigmatizar, punir e marcar. Nada mais. Não há qualquer democracia nesta premissa (como não há em tantas outras). E não: os problemas não caem na escola vindos de fora. A grande parte dos problemas volta à escola (porque o que vai, volta).
A escola deveria servir para nos descobrirmos, para evoluirmos enquanto cidadãos do futuro, com ética e respeito pelo próximo, autónomos, curiosos, criativos, críticos e conscientes: lúcidos.
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