top of page
Foto do escritorPaulo César Gonçalves

MUNDO


 
 O tempo parecia voar com ele: 

 - A sua esposa entrou em trabalho de parto. 

Ainda não haviam passado dez minutos desde que aquela voz feminina que não lhe saía agora da cabeça lhe anunciara, via telemóvel, a notícia mais urgente da sua vida, e já ele se via enfiado no desesperante trânsito que entupia o centro da cidade, rumo ao hospital. 

"Oh, i need your love babe, guess you know it's true...", rezava o rádio, sintonizado numa emissora que o nervosismo não lhe permitia discernir, mas que ainda assim o fazia cantarolar. 

Distraído pela excitação e pela ansiedade, viu-se mais rapidamente do que pensara no parque do hospital. Encontrou um lugar amplo mas nem por isso conseguiu estacionar à primeira. Nem à segunda. Ou à terceira. Quantas emoções, quantos pensamentos: descontrolo. 

"Depressa e bem, há pouco quem.", dir-lhe-ia o avô, por certo (e com razão). 

Tudo nele era, por aquela altura, desconexo: ao mesmo tempo que tentava acender um cigarro, procurava também apertar os atacadores. Quase tombou. Desistiu do cigarro, enlaçou os cordões e seguiu ligeiro para a entrada do edifício hospitalar. 

Enquanto o fazia, olhou o céu, azul como nunca, talvez pelas circunstâncias. Ou talvez não. 

Depois de muito a custo ter conseguido explicar à recepcionista, a uma funcionária e a uma enfermeira que alguém lhe tinha telefonado e dito que a mulher estava já em trabalho de parto, lá foi encaminhado para uma sala de espera. 

As coisas que se descobrem numa situação-limite: gaguez! 

A vida passava-lhe à frente, como uma película: ainda há tempos que não lhe pareciam tão remotos quanto isso, brincava no terraço dos avós ou jogava futebol, com um estendal a servir de baliza. Ainda há anos, que pareciam tão distantes quanto o ontem ou o anteontem, estudava no secundário: por essa altura cheirou amores e achou o amor, o que agora lhe carregava o rebento na barriga. Agora estava ali, prestes a iniciar a maior profissão que não o é: a missão. 

Nove meses não chegaram para que pudesse sentir-se preparado. Por vezes, achava que sim, mas agora, chegado o momento, parecia-lhe que tudo se desvanecera: o medo de não estar à altura era mais forte. 

Por entre tantas ideias e pensamentos, lembrou-se que a pessoa que lhe ligara a anunciar o começo do trabalho de parto tinha utilizado o termo "esposa". Sorriu. Não estava certo. Nem errado, no fundo: era apenas uma forma de ver as coisas. Esposa, sem ser no papel. Mas no peito. 

Pensou levantar-se para tomar um café. Surgiu-lhe breve o desejo de poder fumar o cigarro que não consumara na chegada ao hospital. Vacilou. Abandonou ambas as ideias. E, num abrir e fechar de olhos, adormeceu.

(Horas passaram)

O que está a fazer?, perguntaram-lhe.

Estou só a dormir., respondeu, pensando tratar-se de um sonho.


- Então acorde. Está na hora de conhecer o seu filho.


Naquele preciso instante, movido pelas palavras que o interpelavam, despertou. Sentiu-se mais desperto que nunca. Nunca é também muito tempo. Logo viu a face da enfermeira que o recebera e que depois o acompanhara à sala de espera. Recordou-se de que dissera à mulher que não queria assistir ao parto. Teve vontade de perguntar se tudo tinha corrido bem. Percebeu que era escusado: bastava o sorriso da enfermeira. Levantou- se e seguiu-a até à sala. Não conseguia pensar nada fluído: o desejo de ver quem amava e pegar em braços o novo inquilino deste mundo toldava-lhe o raciocínio. Mal entrou no espaço, foi felicitado por um par de médicos que o aguardavam. Verdade seja dita, não lhes fez grande caso: a ânsia era outra. Foi em direcção aos lábios que tão bem sabia e abraçou-os num longo beijo. Deitado ao lado da mãe, de olhos bem abertos, estava o pequeno grande motivo de tanto nervosismo acumulado. Sorriu para ele, com um sorriso que só os pais sabem oferecer aos filhos e beijou-lhe a inocente testa.

Amor, que nome lhe vamos dar?, perguntou-lhe a nova Mãe, tentando reacender uma saudável discussão que durava há já meses.


Ele, olhando o calendário que enfeitava uma das paredes da sala, notando-lhe o 9 de Outubro bem garrido, respondeu-lhe:

- John, meu amor. Vamos chamar-lhe John. Ela, sorrindo, como se o sorriso denunciasse a intenção por detrás daquela escolha, acenou levemente a cabeça, em sinal de aprovação.

Aos 80 anos de Lennon (9 de Outubro de 1940/ 9 de Outubro de 2020)





45 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 comentário


Ana Maria Machado
Ana Maria Machado
16 de out. de 2020

Adorei este texto! O teu poder criativo não pára!

Curtir
bottom of page