Esta história, real, faz parte de “SOU + EU” (2018), colectânea (de textos meus e da Paula Nogueira) com vivências (em livro que, tal como previa, foi para a gaveta), marcadas pela violência física e psicológica de género (e doméstica).
A mulher sofreu, de verdade, o que aqui se narrará. O homem acabou para este mundo numa cama de hospital. As rezas, o quadro envolvente e o final foram adições artísticas (para dar força aos factos). Os dados e os factos foram compilados, no terreno, pela Marcela (que faz um trabalho admirável neste campo).
TOMO II
"EM NOME DO PAI, ETC ETC ETC..."
Ponto prévio: o narrador deste caso é omnisciente, e valer-se-á dessa faculdade para o que der e vier. Por vezes, e conhecendo o seu feitio, não lhe apetecerá contar tudo. Pede-se ao leitor que seja tolerante em relação a este comportamento (ou, pelo menos, que não se aborreça com essas nuances).
Ao ver ali, naquele quarto de hospital, o marido, moribundo, deitado como um boneco de cera que há-de, muito em breve, ser consumido pelo fogo, Bernardete (nome pedido à Santa de Lourdes pela sua mãe, que alguém a tenha... não confio inteiramente na hipótese de haver um Deus), não se confrontava com nada de novo: era já um mês daquilo.
O fim estava próximo, sentia-o. Os médicos também.
Trocara o conforto possível da sua casa pela cadeira de um quarto de hospital. Essa cadeira servira, quase todos os dias daquele mês (que nem se sabe qual é, ou, antes, eu não quero que se saiba), de cama. Movida por um qualquer impulso, puxa pela sua bolsa, que se encontrava poisada no chão (de madeira). Dela, retira um pequeno estojo castanho, que abre (com a mão esquerda). Com os dedos da mão direita, faz emergir um terço, já baço.
Enrodilha-o por entre ambas as mãos, num emaranhado de dedos e de contas. Olha o marido: impávido, inerte, incapaz.
“Em nome do Pai...”
Detém-se ainda no primeiro verso do sinal da cruz...
- Meu filho da puta. Meu grande filho da puta…, sussura, deixando que os lábios brinquem com essas palavras.
Bernardete não era dada a grandes problemáticas filosóficas, mas percebia o bastante de algumas situações para entender que a mãe do seu marido (sua sogra, portanto) não tinha culpa nessa sentença. Proferia essa expressão porque a vida lha havia ensinado com o sumo que lhe quiseram dar.
Sempre rezara, sempre acreditara em algo, mas esse algo nunca estivera em lado algum para lhe valer.
- Eu podia matar-te, que bem merecias. Eu podia agarrar nessa almofada e abafar-te já, e tu nem te mexias. Não está cá ninguém...mas não vou ser cobarde...
Bernardete, descalça, porque lhe era confortável, ajoelha, porque é de sua vontade, os seus sessenta e três anos no chão, diante da cama na qual o marido jaz. Só se escuta, no quarto, o som das máquinas, extensões daquele velho e suado corpo. Lá fora, pouco mais do que rumores, aqui e ali.
É madrugada. De sexta-feira.
A mulher, ajoelhada, como já foi referido, e com o terço apertado entre os dedos, retoma a oração, começando por se benzer:
- Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus Nosso Senhor, dos nossos inimigos; Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
O ritmo é acelerado. As palavras saem como tabuada apre(e)ndida à palmatória numa qualquer escola de plano centenário: Marrar, decorar, vomitar, trilogia perfeitamente actual.
- Creio em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas; E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos Céus. E encarnou pelo espírito santo no seio da virgem Maria e se fez homem. Também por nós foi crucificado, sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as escrituras, e subiu aos Céus, onde está sentado à direita do pai. De novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos, e o seu Reino não terá fim. Creio no espírito santo, senhor que dá a vida e procede do Pai. Com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica. Professo um só baptismo para a remissão dos pecados, e espero a ressurreição dos mortos, e a vida do mundo que há-de vir. Amém.
De vez em quando, Bernardete oferece uma rápida piscadela ao corpo que lhe faz, ali, a companhia possível. Ainda que ele, que por minha vontade parece não ter nome (e assim continuará), esteja com os pés mais do lado de lá (seja o lá o “outro lado” contrário à vida) do que de cá (da terra dos que comem, dormem e fazem coisas vergonhosas uns aos outros), ela acha, sempre, apesar de sentir o oposto, que ele pode acordar a qualquer momento.
De volta à oração. Os olhos estão fechados. Estivessem abertos e fitariam o chão:
- Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como é no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.
Avé, Maria, cheia de graça, o senhor é convosco; Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus; Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.
Avé, Maria, cheia de graça, o senhor é convosco; Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus; Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.
Avé, Maria, cheia de graça, o senhor é convosco; Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus; Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.
Glória ao Pai, ao filho e ao espírito santo; Como era no princípio, agora e sempre por todos os séculos dos séculos. Amén. Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno; Levai as almas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem.
Os dedos vão rodando, com suficiente destreza, as contas do terço.
Deixemos Bernardete entregue à sua oração do Terço. Para quem sabe como funcionam estas coisas (e quem não sabe ficará a saber), Bernardete prepara-se para entrar na parte dos Mistérios.
Existem, segundo os entendidos nesta matéria (e eu não o sou), uns períodos que convidam à reflexão, ou meditação, ou contemplação, durante cada um dos cinco períodos afectos aos Mistérios evocados.
Como referi, deixemos as rezas e as contas para Bernardete. Ela está aqui ao lado, em plena reza, ao lado da cama. Eu tomarei conta do tempo de reflexão (e não o faço, assumindo que ela não é capaz de o fazer: já não vale a pena), aproveitando, também, para contar uma história:
O Primeiro Mistério Doloroso: A Oração de Jesus Nosso Senhor no Horto das Oliveiras;
Bernardete teria uns 15/16 anos quando aceitou, para mal dos seus pecados, ou, na verdade, para mal de tudo e mais alguma coisa, boleia daquele que viria a ser o seu marido. À época, este homem sem nome (porque não me apetece, só para relembrar), aqui pertinho deitado, tinha 27 anos. Era casado. Tinha já dois filhos. É verdade!
No decurso desse episódio, Bernardete engravida. Uma boleia com segundas intenções, portanto. Arregalem os olhos de antemão: este sujeito, aqui ao lado, tinha, nesse tempo, e em simultâneo, três mulheres grávidas por sua exclusiva obra: Bernardete, a sua mulher (da altura) e uma outra amante.
Ingénua e incauta, desconhecedora das vicissitudes da vida, com pouca ou nenhuma experiência, é bem certo, e nada descabido, afirmar que Bernardete, pobre coitada, nem deveria saber, por essa altura, “como se faziam bebés”.
Custa-vos imaginar que o agora quase-amortalhado terá abusado da inocência da rapariga? Acho que não será difícil chegar a esse desiderato, pois não?
Não duvido de que Bernardete ache o mesmo, ou algo parecido, agora. Quer dizer, quando pensa sobre isso, e não devem ser poucas as vezes, porque agora agora está nestes termos, querem escutar? Eu calo-me para que oiçam:
- (…) entre as mulheres...e bendito é o fruto do vosso ventre... Jesus; Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por …(…)
É, já não aparenta aquela velocidade toda do início, mas parece, ainda assim, compenetrada. Não esperarei para que ela termine este mistério, vou já passar, em termos reflexivos, para o segundo, porque o tempo come-nos as vísceras.
Anuncio o Segundo Mistério Doloroso: A flagelação de Jesus Cristo;
Bernardete, alma perdida, ovelha tresmalhada? Não, apenas uma jovem com (muito) medo. E o medo arrastou-a para o seguinte quadro: temerosa do que a família e a sociedade (a vizinhança, essa máquina patriarcal, não é?) lhe teriam a dizer (a julgar, na verdade), fugiu para a Alemanha. Com o abusador, também como conhecido por futuro marido. Ou aquele-que-não-tem-nome.
Bernardete, jovem e ignorante das coisas (que acreditava que as crianças provinham do espírito santo, ou das árvores, ou de nada disto, de tanto receio, ou culpa, ou sei-lá-o-quê, que a faziam sentir, a ela e a outras como ela, aos milhares, aos milhões, figuras alegóricas para o machismo vigente), traiu, de uma assentada, a tríada sagrada do regime:
Deus (o da igreja) : aquele gajo mau como tudo, punitivo, bisbilhoteiro (enfiava-se em todo o lado, sem pedir autorização), mirone (via tudo, e Bernardete desconfiava que Deus havia visto a cópula entre ela e o marmanjo aliciador), legitimador do bem e do mal...e do medo! Diziam-no também piedoso e benevolente, mas isso ainda estava por averiguar;
Família : a que achava que agia na melhor dos seus interesses, claro, mas que a obrigava a ir à missa várias vezes por semana, a que a aconselhava à submissão, ao recato, à beatice e à palidez na acção (males espalhados pelo Portugal da altura);
A Pátria : abandonando-a (abandonando quem a abandonou). Não por ter consciência do que era aquele Portugal em toda a sua plenitude, mas por ter medo, consciente e inconscientemente, desse Portugal, fruto de não ter mundo, de não ter nada...a não ser um bebé que lhe crescia nas entranhas.
Seria pior a emenda do que o (já horrível) soneto.
Por ser menor de idade, foi procurada pela Pide e pela Interpol. Pena não o terem procurado a ele (por ser maior de idade, e tudo o resto).
Em terras germânicas, e já com um filho, fruto da inocente gravidez, nos braços, é forçada, pelo suspeito do costume, a abortar (aquele que seria o segundo bebé). Foi o primeiro de três abortos (forçados). O denominador comum? Ora…
Passo a anunciar o Terceiro Mistério Doloroso: A Coroação com espinhos;
Não quis interromper o meu anterior raciocínio, e, como tal, não vos contei o que acabou de suceder no quarto. Desculpai a minha aparente falta de generosidade pontual.
Fá-lo-ei, não por qualquer tipo de obrigação, mas por exclusiva vontade, agora:
Bernardete interrompeu a sua oração do terço. Já não se encontra ajoelhada no soalho do quarto. Pouco depois de vos ter dado a escutar a reza da mulher, as máquinas a que aquele desgraçado se encontrava ligado começaram a disparar sons, como alarmes.
Bernardete, estremunhada, saída do transe em ladainha, levanta-se, devagar, e faz, sem grande vontade, é verdade, o que lhe parece moral e eticamente correcto: chama a equipa de médicos e enfermeiros, premindo um dos botões de parede que uma das suas filhas, ali enfermeira, lhe havia indicado previamente (caso fosse necessário).
Ainda que a calma aparente daquela madrugada fizesse antever um certa demora na chegada do socorro, tal não sucedeu. Impávida, Bernardete viu a pequena equipa entrar, todos com a urgência nos olhos, ou, pelo menos, a que as olheiras permitiam.
Não fiz descrições físicas muito ou pouco pormenorizadas de Bernardete, nem do indivíduo que ocupa a cama. Aplicarei o mesmo princípio em relação à filha de ambos, a enfermeira, que também entrou naquele quarto. Acrescentarei, apenas, que o seu nome é Maria.
Maria pede à mãe para que se retire. A equipa quer trabalhar e será mais indicado ela ali não permanecer. Bernardete compreende.
Há uma janela daquele quarto para o corredor. Do lado de fora, ou seja, no corredor, Bernardete assiste àquilo que seriam as tentativas de reanimação do seu marido. Dá-se a cruel circunstância de Maria tentar fazer com o que o seu pai volte à vida.
Não consegue.
O acamado morreu. Acabou. Morreu.
E Bernardete assistiu a tudo, a partir daquela janela. Na verdade, esta situação é uma metáfora da própria existência de Bernardete, até então: à margem da vida, existindo, mas não sendo.
Seguir-se-á o Quarto Mistério Doloroso: Jesus leva a cruz;
Acabou o terço, interrompido ainda no início. Nem sei se se poderá chamar-lhe terço. Será um quinto de um terço? Não tenho como saber.
Bem, colocadas de parte essas dúvidas existenciais, tenho, por vontade, e por missão, se lhe quiserem chamar assim, o dever de vos contar um pouco da vida de Bernardete, que ainda está no corredor, observando tudo. Os médicos ainda mexem nas máquinas e tratam de pequenos grandes procedimentos. Maria também por lá se acha.
Continuarei, porque me apetece, com isto dos Mistérios (com a parte reflexiva a eles inerente), arredados do terço abruptamente truncado pelos acontecimentos desta madrugada. A minha dívida, que não é exactamente uma dívida, é para com Bernardete:
Casou aos 21 anos, em Portugal, onde voltou e se reconciliou com a família. O problema foi casar com quem já sabemos. Após o casamento, emigrou para a Alemanha, novamente. Mais acima, referi o aborto em terras germânicas. Não aprofundei todo o resto: violência psicológica e física, ameaças, perseguições, ciúmes doentios e absoluto controlo e manietação. Foi com este cenário que Bernardete aceitou dar o nó.
Se houve tentativas de separação? Várias, mas terminavam da mesma forma: reconciliação, por medo...e pelos filhos (três). Numa dessas vezes, ficaram separados durante oito meses, o maior período de tempo em toda a relação (de quase cinquenta anos).
Queixas às autoridades? Uma, na Alemanha, por agressões sofridas: chegados a casa de uma festa, e sem razão aparente, apareceu, de espingarda em punho. Bateu-lhe. Fê-lo em frente aos filhos (dois, naquela altura). Foi para o hospital porque precisou de assistência médica: partiu-lhe a cana do nariz e vomitou sangue, em consequência das agressões na zona do abdómen.
Por ter para ele voltado, assumiu-se que a mesma já não faria sentido, e tudo continuou na mesma.
O que era, em todo o seu esplendor, o “na mesma”? Tudo o que foi já foi mencionado, mais alguns “extras”: amantes, desconfia que às centenas.
Há cerca de mês e meio, quando o agora falecido ainda detinha o poder da fala, confessou, de forma arrogante, a Bernardete, que mantinha uma relação com a mulher do seu irmão (uma cunhada de ambos). Uma relação com mais de trinta anos!
Nesse dia, o marido de Bernardete, que, não tarda nada, começará a cheirar ainda pior, estava disposto a contar-lhe muito mais do que isso. Bernardete não quis ouvir.
Eu sei o que vinha por ali, mas também não me alongarei, por respeito à vontade da sofredora.
É justo que ela tenha algum tipo de vontade, não é?
E chegamos ao Quinto (e último) Mistério Doloroso: Cruxificação e Morte;
Quero, quero mesmo, que retenham esta imagem:
Certa vez, num dos trabalhos que Bernardete desempenhou profissionalmente na Alemanha, como empregada de limpeza, os contratantes queriam obrigá-la a lavar, de joelhos no chão, umas escadas. Bernardete recusou, porque entendia que era possível desempenhar a função sem que tivesse de estar de joelhos. Contudo, as pessoas em questão insistiram para que o fizesse dessa forma.
Apesar da necessidade, e de o dinheiro lhe fazer muita falta, manteve a recusa, por entender que era a sua dignidade que estava a ser colocada em causa.
Quero que pensem, afincadamente, no supremo paradoxo que encerra esta situação: uma mulher submissa, ténue, completamente sujeita aos caprichos de um inqualificável marido, recusou vergar-se às mãos de outros. E bem, defenda-se! Ela sabia que a função em questão tinha outras vias de resolução. Por que não aplicou o mesmo princípio em casa?
Ajoelhada toda uma vida, e ajoelhada, uma vez mais, aos pés de uma cama de hospital, Bernardete arrasta-se pela toalha sacudida do tempo. À janela, ainda, descalça, com o terço enrolado numa das mãos (a esquerda), recebe a filha nos braços. Maria chora. E segue-se um diálogo (é bom que saibam deslindar quem é quem):
- Mãe, ele foi-se.
- Assim me pareceu, minha filha.
- Não o consegui trazer de volta…
- Eu vi, filha.
- Sinto muito, Mãe.
- Já passou…
Maria olha para a Mãe. Assegura-lhe que ela ficará bem. Na sua cabeça, saltam pequeníssimas partículas de memória.
- Tenho de voltar ao trabalho. Eu trato de tudo, sim?
- Sim, filha. Eu vou andando.
- Quer vê-lo?
- Quero, sim.
- Mãe, qualquer coisa, mande chamar por mim.
Aqui, Maria faz uma pequena pausa. E retoma:
- Eu sei que, apesar de tudo, gostava do Pai. Lamento que as suas orações não tenham sido atendidas. Lamento mesmo!
Bernardete olha fixamente para Maria. Estende-lhe a mão direita até à face, acariciando-a. Esboça um leve sorriso. E solta uma pergunta, em jeito de resposta:
- Quem é que te disse que as minhas orações não foram atendidas?
NOTA FINAL: Não escreverei a reacção da filha a esta pergunta-resposta. Nem sequer adiantarei muito mais em relação ao que aconteceu de seguida. Afianço, apenas, que Bernardete foi, de facto, ver o falecido. Não por qualquer razão especial: apenas para se assegurar da sua efectiva morte.
Suspirou de alívio. Uma brisa libertadora afagou-lhe os cabelos, emanante de uma das janelas (voltadas para a rua) que se encontrava aberta.
Hoje, Bernardete acredita que nunca gostou do marido e que não sabe o que é o amor, a não ser aquele que sente pelos filhos e pelos netos.
Termino esta narração. Fi-la como quis. Investiram-me desse poder.
Despeço-me, dedicando-vos esta oração:
"Salvé Rainha, Mãe de Misericórdia,
Vida, doçura e esperança nossa, salvé!
A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva;
A Vós suspiramos, gemendo e chorando
neste vale de lágrimas; Eia, pois, advogada nossa, Esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei;
E, depois deste desterro,
Mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre;
Ó clemente, Ó piedosa, Ó doce virgem Maria:
Rogai por nós santa Mãe de Deus,
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
Amém.”
Degredada, sim. Bernardete, a degredada.
Paulo César Gonçalves;
2018;

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