top of page
Foto do escritorPaulo César Gonçalves

VAMOS APANHÁ-LOS (A) TODOS!

- Breve ensaio sobre um princípio lapidar meu e da minha própria circunstância -



Não sei o que terá sido, mas o certo é que abomino práticas autoritárias/impositivas desde que me conheço. O “porque sim”, e admito que eu próprio terei caído na sua falácia (em momentos nos quais a lucidez andava a passear ou pela casa-de-banho), vazio de conteúdo, sempre me causou muita comichão. É provável que os “tens de” e os “deves isto/deves aquilo” que fui escutando ao longo da minha infância tenham esbarrado na minha circunstância, projectando o efeito oposto.


Para quem nasceu e cresceu durante os anos ‘80 (e se calhar ‘90, e se calhar, ainda, nos ‘00), não será, de todo, desfasado evocar/invocar uma certa influência, bem marcada, da educação repressiva e de obediência tão em voga no/do Portugal salazarento.


À boleia disto, tomei a liberdade de cunhar um termo: a “sociedade-fruto-da-praxe”, com o inefável contributo do meio praxístico, de que fugi e o qual refutei (mas que sei de cor, de trás para a frente), com a encíclica “a praxe é útil porque aprendes a obedecer: quando saíres daqui vais para o mercado de trabalho pronto a obedecer a um patrão: a praxe prepara-te para a vida!” As pessoas consentem, de bom grado, que lhes digam o que fazer. E como. Sem grandes questões: o perigoso “porque sim”. Foi com muitos “porque sim” que filhos acabaram a denunciar pais na Alemanha Nazi. Ou em Portugal, com a Pide: não quero viver num país de bufos. Ou antes, não quero que o meu país seja, novamente, um paraíso para a bufagem. Passo ao cerne da problemática, que, nestas linhas, será apresentado como o ponto de vista de alguém que se mantém sempre atento (e é o bastante): o problema das medidas que o governo português quer implementar é que o mesmo não passará de um gigantesco sacudir água do capote, para além de um intolerável incentivo ao apontar de dedo e à queixinha. Vou deixar de fora qualquer análise científica, que as há, para todos os gostos, mas face à incerteza de todas as partes, não vale a pena correr o risco de, de qualquer forma, ser enfiado no saco dos radicais de extrema-direita, dos anti-vacinas, dos negacionistas, dos teóricos da conspiração ou dos terraplanistas (se é que são para aqui chamados). Centro-me, também, noutras questões, bem mais prementes: há outras doenças, algumas das quais infecciosas, com potencial mortífero. Nunca escutámos alguém apelar à “responsabilidade de cada um” para o efeito. Quantas pessoas terão morrido infectadas por outras doenças? E quantas outras terão infectado outras tantas, sem lhes ter sido colado o potencial rótulo de “assassinas”? Diabolizaram-se o outro, as festas, os adolescentes irresponsáveis, a dona Maria que foi ao pão ou o Sr. Antunes que passeia o cão, ao ar livre, sem usar máscara. Atacam-se a empatia, o convívio e a solidariedade (abre-se o caminho à caridadezinha), por, parece-me, palpite(s). Deixou de haver outras doenças e diagnósticos: a gripe, dizem, até desapareceu porque se começou a lavar as mãos e a praticar o tão mal empregue termo “distanciamento social” (não será apenas físico?). Muitos chavões emergiram desde o início da pandemia: que estávamos todos em pé de igualdade, que isto, que aquilo. Pois bem: o estado das coisas permitiu aflorar ou aquilatar muitas evidências, mas nenhuma, nenhuma mesmo, foi a suposta igualdade. Pelo contrário: os ricos estão mais ricos, os pobres estão mais pobres e a sociedade portuguesa, que é o que interessa aqui para o caso, profundamente desnivelada, de grandes contrastes, com falhas crassas, na qual umas classes são e sempre foram privilegiadas (e que, como tal, nem disso têm consciência, uma vez que os privilégios são dados como adquiridos e universais), e as outras, de que se compõem a larga maioria da população, vêem essas benesses por um canudo, ignora essa enorme disparidade. É o velho costume de olhar para a árvore e não vislumbrar a floresta. A culpa é sempre dos mais frágeis, dos incultos, dos ignorantes, dos “pouco qualificados” (ainda que sejam a estes negadas, uma e outra vez, acessibilidades que alguns de nós têm por certas). É assim que florescem as ideias feitas das profissões de primeira, de segunda e de terceira, do sujeitar ao que calha, do “estudasses”, do “tens o que mereces”, etc etc. É assim que se toleraram, com um assobio para o lado, transportes públicos cheios, hipermercados abertos e pequeno comércio compulsivamente fechado, um Portugal que se podia dar ao luxo de sentar o rabo em casa, ou então vir para as janelas ou varandas escarnecer do outro Portugal que tinha de sair à rua (ou queria sair, temendo pelo sustento), enquanto a televisão e os seus canais disseminavam a catástrofe e o apocalipse sanitário. Com um assobio para o lado destruiram-se vidas inteiras, já de si cheias de sacrifício, agravaram-se problemas e projectaram-se altares à purga das doenças mentais. As medidas anunciadas pelo senhor primeiro-ministro são, a meu ver, reveladoras de um imenso descontrolo e tentam virar o sentido da bússola: em vez de serem suportadas por algum tipo de evidência, procuram, por si só, criar uma qualquer evidência que abra espaço ao apuramento de culpados (que não o governo). Isto não é precaução: é repressão, misturada com estupidez e uma dose generosa de impunidade. Não vou bater muito mais nesta tecla, acho que chegará o tempo das ilações, quando a distância assim permitir. A escrita vai longa. Assim, para terminar, o pormenor (isso mesmo) da aplicação “stayaway covid”: não tenho moral para criticar quem o instalou. Nem quero. Cada um saberá de si. Mas acho de baixa índole acusar quem não o fez, a reboque de argumentos fraquinhos suportados na utilização (facultativa) de outras aplicações (como as redes sociais). Que me recorde, nenhum governo me forçou/obrigou a instalar nada, até à data. Isto abre um precedente muito grave: a imposição de uma aplicação específica, suportada por fiscalização policial. Acho que é muito claro, face a tudo o que foi escrito, que há uma diferença gigântica entre alguém avançar para uma página numa qualquer plataforma online e a obrigatoriedade, sobre coerção, da instalação de uma aplicação que supostamente (a palavra é essa) nos avisa sobre a presença de infectados. Será que valerá a pena gastar letras com a aplicação em si? O que faltará a um qualquer infectado com a vida em supenso: uma estrela de seis pontas cosida numa das mangas ou ao peito? “Vamos apanhá-los (a) todos!”, como anunciava o genérico do Pokémon. E se o governo se lembrasse, de repente, que deveríamos ter a aplicação do “Pokémon” nos telemóveis, adaptada às circunstâncias actuais? Não há ilusões há muito, não é preciso um Snowden vir alertar-nos: vigiados somos, desde sempre, mas isto é outra coisa. Lamento, mas não quero, no futuro, acordar num país, ou num mundo, que me dita, a título de exemplo, que usar vermelho nas roupas é uma apologia ao socialismo, ou que beber coca-cola é uma concessão ao neoliberalismo/imperialismo, qualquer uma das situações apresentada como mãe de todas as doenças.


17 visualizações1 comentário

1 commento


Ana Maria Machado
Ana Maria Machado
16 ott 2020

Parabéns, Paulo! Mais uma vez, a verdade é dita de uma forma natural !

Mi piace
bottom of page