- Demoraste...
- Estive a fazer mexidos.
É mais ou menos assim que imagino um possível diálogo de reencontro entre o meu Avô António e a minha Avó Maria do Nascimento (já sem os problemas auditivos que a afectaram em vida).
Num dia como o de hoje, de um Novembro cujo frio, no começo da encosta que trepa até ao alto da Penha, era, também, Nicolino (não esqueço a expressão de alguém que, ao deparar-se com a aragem cortante da uma da manhã, deste mês, deixou sair a icónica "as Nicolinas já preenchem o ar"), a minha Avó foi-se embora.
Fui eu que lhe dei boleia para a morte, levando-a até ao hospital. A última vez que a vi, a 17 de Novembro de 2004, acabara de sair do carro, para ficar internada. Morreu com infecção respiratória (se fosse hoje, de gripe não seria, uma vez que desapareceu).
Não gosto de hospitais, nem de visitas a hospitais. Não sei se mereço, ou não, censura. Os meus Avós paternos consumiram-se lá, por entre visitas dominicais, comigo ainda criança. Comecei a acreditar, por essa altura, que, se fosse visitar alguém ao hospital, essa pessoa morreria em breve. Foi por essa razão que não coloquei lá pés.
Em 2004, depois de fugir de um inferno, percebi, pela primeira vez em idade adulta, o inferno de perder alguém.
Ainda hoje, sempre que penso no termo "casa", é lá, por entre paredes ásperas de granito, com o soalho de madeira, coberto por passadeiras, a concorrer com instrumentos de percussão. A (casa) deles.
Ficava a 300 metros do centro da cidade, mas não o era: poderíamos escrever, sem grande margem de erro, que era o local onde a cidade começava a ser monte (e o monte começava a ser cidade). Um limbo em tons de verde.
A minha Avó não era uma pessoa de afectos visíveis, nem tinha muitas palavras para oferecer. Contudo, a sua aparente austeridade não sobrevivia para lá da aparência.
Nunca a achei feliz. Tinha, apenas, momentos. E cantava (para quem a quisesse escutar, mas, sobretudo, para as paredes).
O Natal vivia-lhe no verde triste dos seus olhos.
De personalidade fechada, complexada, até, serviu, muitas vezes, de inspiração para histórias mirabolantes:
Na minha boca, a minha Avó tinha sido Alferes, em Angola, possuía um helicóptero desmontado (enterrado/escondido na poça que existia ao lado da sua casa), criara um leão (convencida de que era um gato), havia participado no casting para o filme "Robocop" (daí a "Avocop") e tocava guitarra eléctrica antes de escutar o terço (ou durante, consoante a minha disposição) na Rádio Renascença (em directo da Capelinha das Aparições, em Fátima).
Entre Jimmy Page, Freddie Mercury e a minha Avó, Maria do Nascimento, há uma série de pontos de contacto:
1 – Eram estrelas rock (cada qual à sua maneira);
2 – Apesar de cantarem e tocarem guitarra, sofriam de timidez: Freddie Mercury não dava entrevistas, assim como Maria do Nascimento (que recusava proferir mais de dez palavras seguidas); Jimmy Page concedia, mas não disfarçava o embaraço;
3 – Tinham em comum uma enorme admiração por Jimi Hendrix;
4 – Freddie Mercury era natural de Zanzibar, embora tenha vivido grande parte da sua vida em Londres, onde prosperou; Algo parecido aconteceu com Maria do Nascimento, que nasceu em Fafe, mas desenvolveu a sua arte em Guimarães; Jimmy Page, natural de Honslow, adoptou, também, outra cidade (Londres);
5 - Mercury adorava gatos; Maria do Nascimento levava essa adoração um pouco mais longe: teve um leão de estimação, convencida de que se tratava de um gato (até ao dia em que o "gato" lhe comeu duas galinhas); Page costumava efectuar rituais com gatos;
6 - Mercury e Nascimento faleceram no mesmo dia: 24 de Novembro (um em 1991, a outra em 2004). Especula-se que tenha sido combinado; Page nasceu a 9 de Janeiro, tal como Maria do Nascimento; Estranhas coincidências marcam este triângulo rockeiro.
"Olha que aquele rapaz é muito palerma..."
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