As negociações foram duras, mas houvera acordo: ia haver cortejo.
Do que se escreve, por aqui? Ora, a coisa faz-se da seguinte maneira: Quando o Zé Maria faleceu, encontrou, lá no firmamento longínquo do que foi mas que já não é (ou, pelo menos, já não é como foi), muita preguiça (a que alguns chamavam reforma).
Aquilo não lhe agradou. Nada. E conferenciou. Muito:
- O que fizeres, será bem feito! E apoiar-te-ei., disse-lhe o Engenheiro Hélder Rocha.
- Isso já me tinha passado pela cabeça., confessa-lhe Jerónimo Sampaio.
- Aí está uma excelente ideia!, anima o Padre Gaspar Roriz. - É para ontem, caralho. (Adivinhai lá quem disse isto)
- Ai, Menino, que pensamento bonito., sorriu-lhe a Aninhas, segurando a lança (adornada por fitas) que o Jaime (Xavier de Carvalho) lhe havia oferecido.
Ouviu tantos. Mas tantos! Alguns estavam renitentes (por ócio). Outros estavam já em pulgas. Mas todos o queriam.
(Queriam o quê, porra? Conte já o que se passa, senhor autor!)
A voz sensata e compassada do Senhor Faria Martins mostra o caminho do veredicto:
- Está tudo muito bem, sim Senhor. Por mim, assino de cruz. Mas ainda é preciso falar com o Santo.
O Santo era, claro está, São Nicolau. Um dos coreiros, que ainda tinha a ideia de andar a cavalo (como quando ia a Santo Estêvão recolher o dízimo), ouvira as palavras do Ancião Faria Martins a meio, e como era costume a rapaziada chamar "Santo" ao Alexandre (Rodrigues), achou que era dele que falavam. Foi chamá-lo. O 'Xandre' berrou-lhe, porque o Zé Maria já lhe tinha pedido a opinião, e explicou àquele desgraçado que o Senhor Faria Martins referia-se ao Santo 'himself', o 'Nico'.
Logo o coreiro lhe apresentou as suas desculpas.
Bem, era preciso formar comitiva para ir apresentar aquela repentinidade ao padroeiro da estudantada. Alguém, mais despachado (foi mesmo o Gomes Alves, enquanto comia uma maçã,) sugeriu para que lá fossem todos. Todos são, como está escrito, todos. Mas era preciso descobrir onde era o 'lá'. São Nicolau não tinha morada fixa. Era dado aos devaneios próprios de um Nicolino (que são, como se sabe, quaisquer uns).
E lá foram eles, todos, porque todos eram importantes, ao 'lá', ou seja, por aí. Quem os visse ao longe, qual onda sem freio, acharia que se tratava de um arrastão. Os coreiros, sempre com a ideia dos cavalos, abriam aquele peculiar cortejo.
Foram dar com o Santo a ler um livro. Do José Rodrigues dos Santos. Estava à sombra de uma árvore (um pinheiro, que também os há em 'lá'). Quando viu a comitiva, sobressaltou-se:
- Eu não tenho prendas para todos!, bradou.
- Não viemos a isso., responde-lhe o Senhor Faria Martins.
- Com sua licença, ó Santinho: O que está a ler?, acrescenta o distinto Vimaranense.
- Olha, 'Tónio, isto não é bom. Aquele rapaz das orelhas salientes precisa de uma ocupação nova. Talvez não lhe fizesse mal ter uma sachola na mão...
(a multidão ri a bandeiras despregadas...ou seria a estandartes?)
Continua o Santo:
- Já te disse que gosto dos teus óculos? Carago, nunca consegui encontrar nenhuns em condições.
- Pois que fique assente: Encontre a ideia do Zé Maria bom porto, e eu garanto-lhe uns óculos destes. Meia-haste e tudo!, conclui o homem do laço.
- O Zé Maria? O Zé Maria morreu? Ó rapaz, estás onde?, pergunta o Santo Pai Natal.
- Eis-me, Senhor., acusa-se o Afonso Henriques.
- Carago, Zé Maria! E deixaste as nossas Festas?
- Não tive culpa. Alguém me quis cá..., responde o Zé Maria, resignado.
- E o que trazes aqui, afinal? Ó Faria Martins, explicas tu ou ele? Ah, e está ali o Mor. E a Aninhas...ao carrachucho do Delfim e do Sampaio. Ei, o Meira, o Bilinho, o Bráulio, o Roriz...tantos! Isto é importante?, questiona o Nicolau de Mira. - E eu! - E tu, Xico, claro!
- É importante, claro. Olhe, vamos directos ao assunto. O Zé Maria chegou aqui cheio de ideias novas e o rapaz tem razão: somos preguiçosos. A questão é a seguinte, Santinho: temos de exercitar a velhada..., começa o Faria Martins.
- Não sei se estou a perceber..., entrecorta o Santo.
- Simples (continua o Senhor Faria Martins): queremos fazer o cortejo do Pinheiro. O pessoal do outro lado não pode, tem para lá um vírus que ataca depois das 13 horas. A ideia do Zé Maria é fazer o cortejo aqui, ou.... - Ou o quê?, insiste o Santo. - Ou do outro lado.
- Isso já me parece complicado..., declara São Nicolau.
- Vou deixar que seja o Zé Maria a falar. Rapaz, chega-te à frente., desafia o Senhor Faria Martins.
O Zé Maria enche o peito para falar. O discurso é fluente e escorreito:
- Xandre...desculpe, Santinho, a proposta é a seguinte: queremos fazer aqui, nisto, sei lá, mas o ideal seria lá em baixo. O pessoal está enrascado com a história do vírus e não vai ter cortejo em condições. Alguém tem de fazer alguma coisa! Por isso, fale com o seu compincha, o São Pedro. Sabemos que está habituado ao humor dele. Quantas vezes nos safou, bem o sei, da chuva no cortejo do Pinheiro. O que queremos é que nos abra as portas para irmos a Guimarães. Essas coisas...
- A tua demanda parece-me nobre, chefe-de-bombos.
São Nicolau olha para o Zé Maria com admiração. O seu pensamento, povoado de embrulhos, abraços, lenços à tabaqueiro, caixas, baquetas, barbas, cuecas e pijamas, admite a efectividade daquela engraçada ideia. Ainda se questiona, porque, afinal, quem descobriria que a mesma seria sinal de que os Nicolinos do Passado estavam dispostos a resgatar o começo das suas Festas? Tudo aquilo lhe parecia bonito.
Ali ('lá', portanto), perante todos, comprometeu-se a negociar com São Pedro. Correu bem. A festa foi enorme. No meio do entusiasmo, um Nicolino mais efusivo beijou o Santo na boca. Ele não apreciou (por causa do hálito e também porque não é dado a essas coisas românticas).
Ninguém sabe (nem o Autor, que apenas sabe da proposta, e a conta, pela primeira vez, a toda a gente), ao certo, as negociações. Sabe-se, apenas, que o cortejo sairá do Cano, como sempre, com o Zé Maria a marcar o compasso, com a ajuda da "boneca".
O autor está em crer que o cortejo, à imagem dos de anos passados, terá o Xico do Jesualdo a "mandar para o caralho" os coreiros, por não "perceberem nada desta merda" (tocar caixa, por assim dizer), mas a pedir-lhes desculpa logo a seguir (com toda a paciência própria dos corações gigantes).
O autor não sabe, não sabe mesmo, se o Senhor Faria Martins cumpriu a promessa ao São Nicolau, mas sendo Ele um Homem de palavra, não duvida de que o tenha feito. Ao ser assim, é preciso retratar o Santo com aqueles icónicos ajudantes da vista.
Ilustração de portugalize.me
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