top of page
  • Foto do escritorPaulo César Gonçalves

«um reitor, um régulo académico e restante séquito»



Vem um reitor, usando uma toga académica, carregando papelada, seguido de um régulo, de maleta, e de um séquito ululante e servil. Chegados ao batel infernal, diz o reitor:


Ó da barca!


DIABO

Quem vem por aqui?

Sôdoutor, emproado,

vens carregado...


reitor

Mandaram-me vir, só me vesti...

E é para onde a viagem?


DIABO

Para o lago dos danados.


reitor

Mas eu ainda não morri!

Vim ao engano; Oh, desgraçados!

Contava ir a uma homenagem!


DIABO, apontando para o administrador e séquito


E é quem essa vadiagem?

Esta é a tua barca, esta!

Vais para o Inferno, seu gabarola!


reitor

Arrenegaria eu dessa festa

e da piiii da barcagem!

Esta é a minha cort...camaradagem,

não está refém de farta esmola.


DIABO

Perguntei quem era, o resto melhor tivesses calado;

Sei bem vosso mester:

à custa do estudante sabeis viver,

lançando-lhe dois mil enganos;

Forjastes, vai para vinte anos,

dinastia que não quer morrer;

Embarca, doutor da mula ruça,

mas só tu: do resto não cabe aqui a fuça!

E diz 'puta'! Diz! Sem censura;

Teu verso epitáfico, ó 'ternura',

não se livrou de louvor biográfico;

Melhor qualquer palavrão

do que a tua causa, ó intrujão!


reitor


Pois digo-te que não quero!


DIABO

Tenho tempo, hás-de vir, aqui, aqui! Eu espero.


reitor

Quantas missas eu ouvi!

Não me poderei salvar?


DIABO

Oh! Ouvir missa. E dá-las: para enganar...

teu caminho antevi.


reitor

E meus títulos, que lhes farão?

E o estatuto, e a reputação?


DIABO

E o dinheiro mal levado,

foi de quem a satisfação?


reitor

Chama-se mérito, e competição,

serviço prestado, caprina lana;

Por fazer passar caco por porcelana

terei de cozer no caldeirão?

Mais milhão, menos milhão...

e eles entram na barca ou não?



O reitor vai-se, todo ufano, a uma outra barca ali atracada, seguido pelo régulo e pelo séquito, esperando que esta os leve à homenagem que crê merecer. Diz-lhe:


Ó desta caravela,

poder-nos-ás levar nela?


ANJO

O que carregas t'embaraça,

a ti e ao resto dessa populaça.


reitor

Esta papelada? Não há mercê que me faça?


(faz sinal ao régulo, que abre a maleta)


E com estímulo, vamos lá?


ANJO (apontando para a barca do Diabo)


Essa soma é do trabalhador e do estudante:

some-te, coisa repugnante;


Aquela barca que ali está

levar-te-á.

Vai-te, alma conspurcada!


reitor (apontando para o régulo e para o séquito)

Tenho eu por filhos

estes, que me seguem os trilhos;

Crias são, muy amadas,

já sabidas e bem mandadas:

acostumadas ao meu proveito!


ANJO

Pois! Se tivesses feito tudo direito,

seriam essas 'crias' escusadas;


reitor

E é o que determinais,

que vá eu cozer ao Inferno?


ANJO

Inscrito estás no caderno

das ementas infernais;


O reitor torna à barca dos danados, dizendo:


Ó barqueiro! Que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo,

levai-me àquele fogo!

Não nos detenhamos mais.


DIABO


E pelo ardente canavial

recordaremos tua façanha:

português ou internacional

enfiaste em artimanha;

Olha para trás, mais uma vez,

despede-te do teu elogio pago;

Ficam, mais um mês,

talvez até se joguem ao lago:

o júri do fato à medida

que chorará tua partida,

mais o rapaz da associação académica

e os que ao fundo das costas te dão lambida; Ah, e o conselho de curadores: que ricos, eles que tentem explorar os mafarricos;

Finou-se, com a crise pandémica,

tua acção bem travestida.




Preparava-se o Diabo para pegar na prancha, quando se ouve o toque de um telemóvel. O reitor estranha. Pensa ter escutado mal. Mas o toque é insistente. Coça a cabeça. Num ápice, desperta. O telemóvel vibra na mesinha de cabeceira. Estremunhado, pega nele e repara que é o administrador que lhe liga. Respira fundo. Tudo não passara de um sonho.




2.215 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page