Vem um reitor, usando uma toga académica, carregando papelada, seguido de um régulo, de maleta, e de um séquito ululante e servil. Chegados ao batel infernal, diz o reitor:
Ó da barca!
DIABO
Quem vem por aqui?
Sôdoutor, emproado,
vens carregado...
reitor
Mandaram-me vir, só me vesti...
E é para onde a viagem?
DIABO
Para o lago dos danados.
reitor
Mas eu ainda não morri!
Vim ao engano; Oh, desgraçados!
Contava ir a uma homenagem!
DIABO, apontando para o administrador e séquito
E é quem essa vadiagem?
Esta é a tua barca, esta!
Vais para o Inferno, seu gabarola!
reitor
Arrenegaria eu dessa festa
e da piiii da barcagem!
Esta é a minha cort...camaradagem,
não está refém de farta esmola.
DIABO
Perguntei quem era, o resto melhor tivesses calado;
Sei bem vosso mester:
à custa do estudante sabeis viver,
lançando-lhe dois mil enganos;
Forjastes, vai para vinte anos,
dinastia que não quer morrer;
Embarca, doutor da mula ruça,
mas só tu: do resto não cabe aqui a fuça!
E diz 'puta'! Diz! Sem censura;
Teu verso epitáfico, ó 'ternura',
não se livrou de louvor biográfico;
Melhor qualquer palavrão
do que a tua causa, ó intrujão!
reitor
Pois digo-te que não quero!
DIABO
Tenho tempo, hás-de vir, aqui, aqui! Eu espero.
reitor
Quantas missas eu ouvi!
Não me poderei salvar?
DIABO
Oh! Ouvir missa. E dá-las: para enganar...
teu caminho antevi.
reitor
E meus títulos, que lhes farão?
E o estatuto, e a reputação?
DIABO
E o dinheiro mal levado,
foi de quem a satisfação?
reitor
Chama-se mérito, e competição,
serviço prestado, caprina lana;
Por fazer passar caco por porcelana
terei de cozer no caldeirão?
Mais milhão, menos milhão...
e eles entram na barca ou não?
O reitor vai-se, todo ufano, a uma outra barca ali atracada, seguido pelo régulo e pelo séquito, esperando que esta os leve à homenagem que crê merecer. Diz-lhe:
Ó desta caravela,
poder-nos-ás levar nela?
ANJO
O que carregas t'embaraça,
a ti e ao resto dessa populaça.
reitor
Esta papelada? Não há mercê que me faça?
(faz sinal ao régulo, que abre a maleta)
E com estímulo, vamos lá?
ANJO (apontando para a barca do Diabo)
Essa soma é do trabalhador e do estudante:
some-te, coisa repugnante;
Aquela barca que ali está
levar-te-á.
Vai-te, alma conspurcada!
reitor (apontando para o régulo e para o séquito)
Tenho eu por filhos
estes, que me seguem os trilhos;
Crias são, muy amadas,
já sabidas e bem mandadas:
acostumadas ao meu proveito!
ANJO
Pois! Se tivesses feito tudo direito,
seriam essas 'crias' escusadas;
reitor
E é o que determinais,
que vá eu cozer ao Inferno?
ANJO
Inscrito estás no caderno
das ementas infernais;
O reitor torna à barca dos danados, dizendo:
Ó barqueiro! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo,
levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais.
DIABO
E pelo ardente canavial
recordaremos tua façanha:
português ou internacional
enfiaste em artimanha;
Olha para trás, mais uma vez,
despede-te do teu elogio pago;
Ficam, mais um mês,
talvez até se joguem ao lago:
o júri do fato à medida
que chorará tua partida,
mais o rapaz da associação académica
e os que ao fundo das costas te dão lambida; Ah, e o conselho de curadores: que ricos, eles que tentem explorar os mafarricos;
Finou-se, com a crise pandémica,
tua acção bem travestida.
Preparava-se o Diabo para pegar na prancha, quando se ouve o toque de um telemóvel. O reitor estranha. Pensa ter escutado mal. Mas o toque é insistente. Coça a cabeça. Num ápice, desperta. O telemóvel vibra na mesinha de cabeceira. Estremunhado, pega nele e repara que é o administrador que lhe liga. Respira fundo. Tudo não passara de um sonho.

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